sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Literatura de Cordel: O pavão misterioso (sala de aula e análise)

Objetivos
- Conhecer literatura de cordel.
- Ler por prazer.

Conteúdo
- Leitura e interpretação de cordel

Anos
4º e 5º.

Tempo estimado
Um mês. 

Material necessário
Cópias do cordel O Romance do Pavão Misterioso

Flexibilização
Para alunos com deficiência auditiva
Ter um intérprete de libras em sala é muito importante para o desenvolvimento do aluno com deficiência auditiva. De qualquer modo, proponha ao aluno que sente nas carteiras da frente e fale pausadamente, articulando bem as palavras, para auxiliar aqueles capazes de fazer a leitura orofacial. Antecipe o cordel que será trabalhado na sequência para o aluno surdo e faça marcações com cores diferentes nas terminações de palavras que rimam e em palavras escritas na variedade popular (como são faladas). Preparar uma espécie de 'glossário com as palavras da língua falada e com a sua grafia na variedade padrão da Língua Portuguesa ajuda o aluno a compreender melhor a proposta do cordel. As ilustrações também contribuem para a aprendizagem desses alunos. Amplie o tempo de realização das etapas da sequência e conte com a ajuda do AEE para que o aluno trabalhe a interpretação do cordel na língua de sinais.

Desenvolvimento
1ª etapa
Prepare-se para uma conversa com a turma sobre a literatura de cordel: sua origem, o porquê do nome, seu desenvolvimento no Brasil, o preconceito que pesou sobre o gênero no passado, sua valorização nos dias de hoje etc. Em seguida, estude o cordel O Romance do Pavão Misterioso, também com a intenção de preparar a leitura em voz alta que você fará para os alunos na 3ª etapa.


2ª etapa
Compartilhe com os estudantes as informações reunidas sobre a literatura de cordel. Informe-os de que você vai ler com eles um dos maiores clássicos do gênero - nada menos que o folheto mais vendido de todos os tempos. Caso você tenha conseguido um exemplar original, aproveite para mostrá-lo à sala, deixando que as crianças explorem a ilustração da capa. Se não conseguiu, explique que muitas obras de cordel estão disponíveis na internet e que foi de lá que saiu o texto. Em seguida, avise que você lerá em voz alta a primeira parte do cordel, mas que, no decorrer da atividade, todos poderão desempenhar esse papel.


3ª etapa
Leia em voz alta da estrofe 1 à 25. Em seguida, promova uma discussão com perguntas do tipo: na estrofe 5, o autor afirma que João Batista "pensou pela vaidade". O que isso quer dizer? Proponha que as crianças releiam as 25 estrofes e ajude-as a adequar a entonação e o ritmo da fala. Por fim, informe que, antes de cada uma das sessões de leitura que virão a seguir, elas receberão a cópia de mais uma parte do cordel para que possam preparar a leitura em casa.

4ª etapa
Na segunda sessão, trabalhe com as estrofes 26 a 42. Depois que elas forem lidas por você e pelos alunos, conduza a discussão com perguntas que estimulem a interpretação. Por exemplo: o que o autor quis dizer quando se referiu a "capitalista"? Repita o procedimento nas etapas seguintes.

5ª etapa
Sessão 3 (estrofes 43 a 62): o que a palavra "azougada" significa?

6ª etapa
Sessão 4 (estrofes 63 a 82): o que a personagem Creuza quis dizer com "se és vivo ou encantado"?

7ª etapa
Sessão 5 (estrofes 83 a 104): o que o personagem Evangelista quis dizer com "levo essa estrangeira"?

8ª etapa
Sessão 6 (estrofes 105 a 121): o que Creuza quis dizer com "um rapaz para me ver precisa ser encantado"?


9ª etapa
Sessão 7 (estrofes 122 a 141): o que as crianças acharam do fim da história?

Avaliação
Verifique se os alunos conseguiram interpretar adequadamente o cordel e analise o compromisso deles com a preparação da leitura.

O PAVÃO MISTERIOSO

Eu vou contar uma história
De um pavão misterioso
Que levantou vôo na Grécia
Com um rapaz corajoso
Raptando uma condessa
Filha de um conde orgulhoso.


Residia na Turquia
Um viúvo capitalista
Pai de dois filhos solteiros
O mais velho João Batista
Então o filho mais novo
Se chamava Evangelista.

O velho turco era dono
Duma fábrica de tecidos
Com largas propriedades
Dinheiro e bens possuídos
Deu de herança a seus filhos
Porque eram bem unidos.


Depois que o velho morreu
Fizeram combinação
Porque o tal João Batista
Concordou com o seu irmão
E foram negociar
Na mais perfeita união.

Um dia João Batista
Pensou pela vaidade
E disse a Evangelista:
— Meu mano eu tenho vontade
de visitar o estrangeiro
se não te deixar saudade.

— Olha que nossa riqueza
se acha muito aumentada
e dessa nossa fortuna
ainda não gozei nada
portanto convém qu'eu passe
um ano em terra afastada.

Movido a motor elétrico
Depósito de gasolina
Com locomoção macia
Que não fazia buzina
A obra mais importante
Que fez em sua oficina.



Tinha cauda como leque
As asas como pavão
Pescoço, cabeça e bico
Lavanca, chave e botão
Voava igualmente ao vento
Para qualquer direção.

Quando Edmundo findou
Disse a Evangelista:
— Sua obra está perfeita
ficou com bonita vista
o senhor tem que saber
que Edmundo é artista.

— Eu fiz o aeroplano
da forma de um pavão
que arma e se desarma
comprimindo em um botão
e carrega doze arroba
três léguas acima do chão.

Foram experimentar
Se tinha jeito o pavão
Abriram a lavanca e chave
Encarcaram num botão
O monstro girou suspenso
Maneiro como balão.

O pavão de asas abertas
Partiu com velocidade
Coroando todo o espaço
Muito acima da cidade
Como era meia noite
Voaram mesmo à vontade.

Então disse o engenheiro:
— Já provei minha invenção
fizemos a experiência
tome conta do pavão
agora o senhor me paga
sem promover discussão.


Perguntou Evangelista:
— Quanto custa o seu invento?
— Dê me cem contos de réis
acha caro o pagamento
o rapaz lhe respondeu:
Acho pouco dou duzentos.

Edmundo ainda deu-lhe
Mais uma serra azougada
Que serrava caibro e ripa
E não fazia zuada
Tinha os dentes igual navalha
De lâmina bem afiada.

Então disse o jovem turco:
— Muito obrigado fiquei
do pavão e dos presentes
para lutar me armei
amanhã a meia-noite
com Creuza conversarei.


À meia-noite o pavão
Do muro se levantou
Com as lâmpadas apagadas
Como uma flecha voou
Bem no sobrado do conde
Na cumeeira pousou.

Evangelista em silêncio
Cinco telhas arredou
Um buraco de dois palmos
Caibros e ripas serrou
E pendurado numa corda
Por ela escorregou.

Chegou no quarto de Creuza
Onde a donzela dormia
Debaixo do cortinado
Feito de seda amarela
E ele para acordá-la
Pôs a mão na testa dela.


A donzela estremeceu
Acordou no mesmo instante
E viu um rapaz estranho
De rosto muito elegante
Que sorria para ela
Com um olhar fascinante.

Então Creuza deu um grito:
— Papai um desconhecido
entrou aqui no meu quarto
sujeito muito atrevido
venha depressa papai
pode ser algum bandido.

O rapaz lhe disse: — Moça
Entre nós não há perigo
Estou pronto a defendê-la
Como um verdadeiro amigo
Venho é saber da senhora
Se quer casar-se comigo.


De um lenço enigmático
Que quando Creuza gritava
Chamando o pai dela
Então o moço passava
Ele no nariz da moça
Com isso ela desmaiava.

O jovem puxou o lenço
Ao nariz da moça encostou
Deu uma vertigem na moça
De repente desmaiou
E ele subiu na corda
Chegando em cima tirou.

Ajeitou os caibros e ripas
E consertou o telhado
E montando em seu pavão
Voou bastante vexado
Foi esconder o aparelho
Aonde foi fabricado.

O conde acordou aflito
Quando ouviu essa zuada
Entrou no quarto da filha
Desembainhou a espada
Encontrou-a sem sentido
Dez minutos desmaiada.


Percorreu todos os cantos
Com a espada na mão
Berrando e soltando pragas
Colérico como um leão
Dizendo: — Aonde encontrá-lo
Eu mato esse ladrão.

Creuza disse: — Meu pai
Pois eu vi neste momento
Um jovem rico e elegante
Me falando em casamento
Não vi quando ele encantou-se
Porque me deu um passamento.

Disse o conde: — Nesse caso
Tu já estás a sonhar
Moça de dezoito anos
Já pensando em se casar
Se aparecer casamento
Eu saberei desmanchar.

Evangelista voltou
Às duas da madrugada
Assentou seu pavão
Sem que fizesse zuada
Desceu pela mesma trilha
Na corda dependurada.

E Creuza estava deitada
Dormindo o sono inocente
Seus cabelos como um véu
Que enfeitava puramente
Como um anjo de terreal
Que tem lábios sorridentes.

O rapaz muito sutil
Foi pegando na mão dela
Então a moça assustou-se
Ele garantiu a ela
Que não eram malfazejos:
— Não tenha medo donzela.

A moça interrogou-o
Disse: — Quem é o senhor
Diz ele: — Sou estrangeiro
Lhe consagrei grande amor
Se não fores minha esposa
A vida não tem valor.

Mas Creuza achou impossível
O moço entrar no sobrado
Então perguntou a ele
De que jeito tinha entrado
E disse: — Vai me dizendo
Se és vivo ou encantado.

Como eu lhe tenho amizade
Me arrisco fora de hora
Moça não me negue o sim
A quem tanto lhe adora!
Creuza aí gritou: — Papai
Venha ver o homem agora.

Ele passou-lhe o lenço
Ela caiu sem sentido
Então subiu na corda
Por onde tinha descido
Chegou em cima e disse:
— O conde será vencido.


Ouviu-se tocar a corneta
E o brado da sentinela
O conde se dirigiu
Para o quarto da donzela
Viu a filha desmaiada
Não pode falar com ela.

Até que a moça tornou
Disse o conde: — É um caso sério
Sou um fidalgo tão rico
Atentado em meu critério
Mas nós vamos descobrir
O autor do mistério.


— Minha filha, eu já pensei
em um plano bem sagaz
passa essa banha amarela
na cabeça desse audaz
só assim descobriremos
esse anjo ou satanás.

— Só sendo uma visão
que entra neste sobrado
só chega à meia-noite
entra e sai sem ser notado
se é gente desse mundo
usa feitiço encantado.

Evangelista também
Desarmou seu pavão
A cauda, a capota, o bico
Diminuiu a armação
Escondeu o seu motor
Em um pequeno caixão.

Depois de sessenta dias
Alta noite em nevoeiro
Evangelista chegou
No seu pavão bem maneiro
Desceu no quarto da moça
A seu modo traiçoeiro.

Já era a terceira vez
Que Evangelista entrava
No quarto que a condessa
À noite se agasalhava
Pela força do amor
O rapaz se arriscava.


Com um pouco a moça acordou
Foi logo dizendo assim:
— Tu tens dito que me amas
com um bem-querer sem fim
se me amas com respeito
te senta juntos de mim.

Evangelista sentou-se
Pôs-se a conversar com ela
Trocando o riso esperava
A resposta da donzela
Ela pôs-lhe a mão na testa
Passou a banha amarela.

Depois Creuza levantou-se
Com vontade de gritar
O rapaz tocou-lhe o lenço
Sentiu ela desmaiar
Deixou-a com uma síncope
Tratou de se retirar.


E logo Evangelista
Voando da cumeeira
Foi esconder seu pavão
Nas folhas de uma palmeira
Disse: — Na quarta viagem
Levo essa estrangeira.

Creuza então passou o resto
Da noite mal sossegada
Acordou pela manhã
Meditava e cismada
Se o pai não perguntasse
Ela não dizia nada.


Disse o conde: — Minha filha
Parece que estás doente?
Sofreste algum acesso
Porque teu olhar não mente
O tal rapaz encantado
Te apareceu certamente.

E Creuza disse: — Papai
Eu cumpri o seu mandado
O rapaz apareceu-me
Mas achei-o delicado
Passei-lhe a banha amarela
E ele saiu marcado.


O conde disse aos soldados
Que a cidade patrulhassem
Tomassem os chapéus de
Quem nas ruas encontrassem
Um de cabelo amarelo
Ou rico ou pobre pegassem.

Evangelista trajou-se
Com roupa de alugado
Encontrou-se com a patrulha
O seu chapéu foi tirado
Viram o cabelo amarelo
Gritaram: — Esteja intimado!

Os soldados lhe disseram:
— Cidadão não estremeça
está preso a ordem do conde
e é bom que não se cresça
vai a presença do conde
se é homem não esmoreça.

— Você hoje vai provar
por sua vida responde
como é que tem falado
com a filha do nosso conde
quando ela lhe procura
onde é que se esconde.

Evangelista respondeu:
— Também me faça um favor
enquanto vou me vestir
minha roupa superior
na classe de homem rico
ninguém pisa meu valor.

Disseram: — Pode mudar
Sua roupa de nobreza
A moça bem que dizia
Que o rapaz tinha riqueza
Vamos ganhar umas luvas
E o conde uma surpresa.

Seguiu logo Evangelista
Conversando com o guarda
Até que se aproximaram
Duma palmeira copada
Então disse Evangelista:
— Minha roupa está trepada.

E os soldados olharam
Em cima tinha um caixão
Mandaram ele subir
E ficaram de prontidão
Pegaram a conversar
Prestando pouca atenção.

Evangelista subiu
Pôs um dedo no botão
Seu monstro de alumínio
Ergueu logo a armação
Dali foi se levantando
Seguiu voando o pavão.

E os soldados gritaram:
— Amigo, o senhor se desça
deixe de tanta demora
é bom que não aborreça
senão com pouco uma bala
visita sua cabeça.


Então mandaram subir
Um soldado de coragem
Disseram: — Pegue na perna
Arraste com a folhagem
Está passando na hora
De voltarmos da viagem.

Quando o soldado subiu
Gritou: — Perdemos a ação
Fugiu o moço voando
De longe vejo um pavão
Zombou de nossa patrulha
Aquele moço é o cão.

Voltaram e disseram ao conde
Que o rapaz tinham encontrado
Mas no olho de uma palmeira
O moço tinha voado
Disso o conde: — Pois é o cão
Que com Creuza tem falado.

Creuza sabendo da história
Chorava de arrependida
Por ter marcado o rapaz
Com banha desconhecida
Disse: — Nunca mais terei
Sossego na minha vida.

Disse Creuza: — Ora papai
Me prive da liberdade
Não consente que eu goze
A distração da cidade
Vivo como criminosa
Sem gozar a mocidade.

— Aqui não tenho direito
de falar com um criado
um rapaz para me ver
precisa ser encantado
mas talvez ainda eu fuja
deste maldito sobrado.

— O rapaz que me amou
só queria vê-lo agora
para cair nos seus pés
como uma infeliz que chora
embora que eu depois
morresse na mesma hora.

— Eu sei que para ele
não mereço confiança
quando ele vinha aqui
ainda eu tinha esperança
de sair desta prisão
onde estou desde de criança.

Às quatro da madrugada
Evangelista desceu
Creuza estava acordada
Nunca mais adormeceu
A moça estava chorando
O rapaz lhe apareceu.

O jovem cumprimentou-a
Deu-lhe um aperto de mão
A condessa ajoelhou-se
Para pedir-lhe perdão
Dizendo: — Meu pai mandou
Eu fazer-te uma traição.

O rapaz disse: — Menina
A mim não fizeste mal
Toda a moça é inocente
Tem seu papel virginal
Cerimônia de donzela
É uma coisa natural.

— Todo o seu sonho dourado
é fazer-te minha senhora
se quiseres casar comigo
te arrumas e vamos embora
senão o dia amanhece
e se perde a nossa hora.

— Se o senhor é homem sério
e comigo quer casar
pois tome conta de mim
aqui não quero ficar
se eu falar em casamento
meu pai manda me matar.

— Que importa que ele mande
tropas e navios pelos mares
minha viagem é aérea
meu cavalo anda nos ares
nós vamos sair daqui
casar em outros lugares.

Creuza estava empacotando
O vestido mais elegante
O conde entrou no quarto
E dando um berro vibrante
Gritando: — Filha maldita
Vais morrer com o seu amante.

O conde rangendo os dentes
Avançou com passo extenso
Deu um pontapé na filha
Dizendo: — Eu sou quem venço
Logo no nariz do conde
O rapaz passou o lenço.

Ouviu-se o baque do conde
Porque rolou desmaiado
A última cena do lenço
Deixou-o magnetizado
Disse o moço: -Tem dez minutos
Para sairmos do sobrado.

Creuza disse: — Eu estou pronta
Já podemos ir embora
E subiram pela corda
Até que sairam fora
Se aproximava a alvorada
Pela cortina da aurora.

Com pouco o conde acordou
Viu a corda pendurada
Na coberta do sobrado
Distinguiu uma zuada
E as lâmpadas do aparelho
Mostrando luz variada.

E a gaita do pavão
Tocando uma rouca voz
O monstro de olho de fogo
Projetando os seus faróis
O conde mandando pragas
Disse a moça: — É contra nós.

Os soldados da patrulha
Estavam de prontidão
Um disse: — Vem ver fulano
Aí vai passando um pavão
O monstro fez uma curva
Para tomar direção.

Então dizia um soldado
— Orgulho é uma ilusão
um pai governa uma filha
mas não manda no coração
pois agora a condessinha
vai fugindo no pavão.

O conde olhou para a corda
E o buraco do telhado
Como tinha sido vencido
Pelo rapaz atilado
Adoeceu só de raiva
Morreu por não ser vingado.

Logo que Evangelista
Foi chegando na Turquia
Com a condessa da Grécia
Fidalga da monarquia
Em casa do seu irmão
Casaram no mesmo dia.

Em casa de João Batista
Deu-se grande ajuntamento
Dando vivas ao noivado
Parabéns ao casamento
À noite teve retreta
Com visita e cumprimento.

Enquanto Evangelista
Gozava imensa alegria
Chegava um telegrama
Da Grécia para Turquia
Chamando a condessa urgente
Pelo motivo que havia.

Dizia o telegrama:
"Creuza vem com o teu marido
receber a tua herança
o conde é falecido
tua mãe deseja ver
o genro desconhecido."

A condessa estava lendo
Com o telegrama na mão
Entregou a Evangielista
Que mostrou ao seu irmão
Dizendo: — Vamos voltar
Por uma justa razão.

De manhã quando os noivos
Acabaram de almoçar
E Creuza em traje de noiva
Pronta para viajar
De palma, véu e capela
Pois só vieram casar.

Diziam os convidados:
— A condessa é tão mocinha
e vestida de noiva
torna-se mais bonitinha
está com um buquê de flor
séria como uma rainha.

Os noivos tomaram assento
No pavão de alumínio
E o monstro se levantou-se
Foi ficando pequenino
Continuou o seu vôo
Ao rumo do seu destino.

Na cidade de Atenas
Estava a população
Esperando pela volta
Do aeroplano pavão
Ou o cavalo do espaço
Que imita um avião.

Na tarde do mesmo dia
Que o pavão foi chegado
Em casa de Edmundo
Ficou o noivo hospedado
Seu amigo de confiança
Que foi bem recompensado.

E também a mãe de Creuza
Já esperava vexada
A filha mais tarde entrou
Muito bem acompanhada
De braço com o seu noivo
Disse: — Mamãe estou casada.

Disse a velha: — Minha filha
Saíste do cativeiro
Fizeste bem em fugir
E casar no estrangeiro
Tomem conta da herança
Meu genro é meu herdeiro.

Façamos aqui um parêntese para informar que o Romance do Pavão Misterioso foi escrito, originalmente, pelo paraibano José Camelo de Melo Resende.
Na década de 20, do século passado, João Melquíades Ferreira apossou-se da narrativa e passou a publicá-la como criação sua — fato não muito raro no mundo dos folheteiros de cordel.

A mulher na literatura de cordel

"O pavão misterioso"

Segundo Aguiar Barros nos versos de João Melchíades da Silva, O pavão misterioso, a personagem feminina, Creuza, assume o papel de donzela que tem sua existência confinada ao desejo do masculino, seja ele representado pelo pai ou pelo esposo. Sem direito a companhia de outras pessoas que não estivessem ligadas ao seu círculo familiar, sem poder falar com ninguém que não fosse seu pai e sua mãe, é mantida sob forte guarda, como um objeto valioso. Creuza é conservada por seu pai à distância da sociedade, no alto da torre do palácio em que vive. Digna apenas de veneração, é apresentada ao povo, através da janela, apenas uma vez por ano.
Mulher representante da nobreza. Notória é sua beleza. Ela corresponde ao protótipo de dama casta e frágil, cuja vida monástica a afasta da vida profana e a insere num plano sagrado. A virgindade é condição para que ela participe da moralidade social; sem esta ela seria uma infratora. Sua vida é uma renúncia completa, pois foi educada não para desposar quem seu pai escolhesse, mas para apenas satisfazer o desejo de posse paterno. Os sentimentos que desperta em Evangelista são puros, não paira nenhum artifício de satisfação sexual entre ambos.
O casamento aparece como condição básica para que a união entre um homem e uma mulher seja consolidado perante a sociedade. O sim de Creuza a Evangelista não representa a emancipação do feminino, mas a sua subordinação a outro proprietário. No castelo ela é aprisionada pelo pai, no casamento pelo marido. A fuga do castelo não deflagra a possibilidade de uma nova vida, mas da mudança apenas do tutor, aquele que ditará novas regras que Creuza deverá seguir.
A trova, portanto, sob esta perspectiva é portadora de um discurso moralizante e conservador, estabelecendo uma falsa cordialidade entre os sexos pois ela revela a exploração, a opressão e a dominação que foram alvo muitas mulheres. Mais do que a luta de Creuza pela liberdade, ela narra a disputa de dois homens pela posse de uma mulher. É um jogo de poder que mostra a imagem da mulher submissa, sacrificada.
Uma narrativa que demarca os ideais masculinos num período feudal em que a mulher só tinha papel benéfico como filha obediente ou dentro do casamento. A velha dialética dominação masculina versus opressão feminina se repete. A mãe de Creuza ao viuvar não usa do poder político que poderia gozar, mas reclama a presença do genro para assumir o lugar de governante. Ela não leva em conta a possibilidade de assumir o poder sozinha, opta pelo espaço privado da vida doméstica, colaborando para manter o estado de subordinação do feminino ao masculino.
Descortinar o discurso moralizador que traz no seu bojo a literatura de cordel, bem como discutir os padrões de comportamento que estratificaram certos estereótipos atribuídos à figura feminina é um dos objetivos dessa pesquisa. E nessa leitura construir-se-á um pouco da história da mulher brasileira, um campo onde há muito por se fazer, para ser descoberto.

Música
Pavão Misterioso
Composição: Ednardo
Pavão misterioso
Pássaro formoso
Tudo é mistério
Nesse teu voar
Ai se eu corresse assim
Tantos céus assim
Muita história
Eu tinha prá contar...
Pavão misterioso
Nessa cauda
Aberta em leque
Me guarda moleque
De eterno brincar
Me poupa do vexame
De morrer tão moço
Muita coisa ainda
Quero olhar...
Pavão misterioso
Pássaro formoso
Tudo é mistério
Nesse seu voar
Ai se eu corresse assim
Tantos céus assim
Muita história
Eu tinha prá contar...
Pavão misterioso
Pássaro formoso
No escuro dessa noite
Me ajuda, cantar
Derrama essas faíscas
Despeja esse trovão
Desmancha isso tudo, oh!
Que não é certo não...
Pavão misterioso
Pássaro formoso
Um conde raivoso
Não tarda a chegar
Não temas minha donzela
Nossa sorte nessa guerra
Eles são muitos
Mas não podem voar...


Bibliografia básica:
AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da Literatura. 8 ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1991.
Autores de cordel/seleção de textos e estudo crítico por Marlyse Meyer. São Paulo: Abril Educação, 1980.
CASCUDO, Luis da Camara. Literatura oral no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: J. Olympio; Brasília: INL, 1978.
LUYTEN, Joseph Maria. A literatura de cordel em São Paulo. Edições Loyola, 1981.
_______. O que é literatura popular. Brasiliense, 1983.
GONÇALO, Ferreira da Silva. Antologia brasileira de literatura de cordel.Rio de Janeiro, 1994.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. Fundação Casa de Rui Barbosa. Fundação Universidade Regional do Nordeste. Literatura popular em verso. Antologia. Tomo II.
AGUIAR NEITZEL, Adair de. Mulheres rosianas. Dissertação de mestrado. Publicação em meio eletrônico: http://www.cce.ufsc.br/~neitzel/literatura
RIBEIRO, Lêda Tâmega. Mito e poesia popular. Funarte/Instituto Nacional do Folclore. Rio de Janeiro, 1987.
TAVARES JÚNIOR, Luis. O mito na literatura de cordel. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1980


http://geocities – acesso 05/08/2011








quinta-feira, 4 de agosto de 2011

ROMANTISMO: AMOR E MORTE

Para que possamos falar falar do tema amor e morte no Romantismo precisamos compreender que ele se dividiu basicamente em três períodos e as  principais característica do Romantismo em seus três períodos é:
 o sentimentalismo; a supervalorização das emoções pessoais: nesse estilo é o interior humano que conta, o subjetivismo. À medida que a busca dos valores pessoais se intensifica (como o culto do individualismo), perde-se a consciência do coletivo social.
a excessiva valorização do "eu" gera o egocentrismo: o ego como centro do universo. Evidentemente, surge aí um choque entre a realidade objetiva e o mundo interior do poeta. A derrota inevitável do ego produz um estado de frustração e tédio, que conduz à evasão romântica. Seguem-se constantes e múltiplas fugas da realidade: o álcool, o ópio, os prostíbulos, a saudade da infância, as constantes idealizações da sociedade, do amor, da mulher. O romântico foge no tempo e no espaço. No entanto, essas fugas têm ida e volta, exceção feita à maior de todas as fugas românticas: a morte.
Devido aos Períodos houve uma sensível mudança no comportamento dos autores românticos: há algumas semelhanças entre os autores de um mesmo período, mas a comparação entre os primeiros e os últimos representantes, revela profundas diferenças. No Brasil, por exemplo, há uma distância considerável entre a poesia de Gonçalves Dias (primeira geração - Indianista ou Nacionalista), de Álvares de Azevedo (segunda geração - Ultra-Romantismo) e de Castro Alves (terceira geração - Condoreira). Por isso há a necessidade de se dividir o Romantismo em gerações.

A Segunda Geração da Poesia Romântica

"No Brasil, ultra-românticos foram os poetas-estudantes, quase todos falecidos na segunda adolescência, membros de rodas boêmias, dilacerados entre um erotismo lânguido e o sarcasmo obsceno. Os que dobraram a casa dos vinte e cinco acumularam os fracassos profissionais e os rasgos de instabilidade, confirmando a índole desajustada desses 'poetas da dúvida', a que faltam por completo a afirmatividade dos românticos indianistas e a combatividade dos condoreiros." (José Guilherme Merquior)

Esta segunda geração da poesia romântica brasileira é marcada pela falência dos ideais nacionalistas utópicos dos nossos primeiros românticos. A oclusão do sujeito em si próprio é detectável por um fenômeno bem conhecido:
o devaneio,
o erotismo difuso e obsessivo,
a melancolia,
o tédio,
o namoro com a imagem da morte na figura feminina,
a depressão,
a auto-ironia masoquista
desfigurações de um desejo de viver que não almejou sair do labirinto onde se aliena o jovem crescido e em fase de estagnação.
Enquanto o homem busca um espaço social, muitas vezes iludido quanto às possibilidades concretas de atingi-lo, o ultra-romântico afasta-se; opta pela fantasia ao invés da realidade, entrega-se aos seus próprios fantasmas, oculta-se do mundo passando a ser ele mesmo o seu mundo. Assim o poeta sente-se liberto dos condicionamentos e feridas ao tentar adaptar-se.
Entretanto, esta atitude o escraviza quando levado ao extremo: negar a vida conduz ao delírio da morte, ao excessivo egocentrismo, à nostalgia de um passado medieval, desta vez idealizado, mais nobre, menos embrutecedor. Segue-se as ilusões deste passado, o seu culto, do qual resultam mais demônios do que anjos. O poeta consumido por suas próprias idéias, torna-se "fantasma" ao invés de "eleito", transforma-se em "suicida vitimado" pela necessidade de uma vida melhor, uma vida maior, que, no entanto, não consegue conquistar.
O chamado "mal-do-século" foi difundido no Ultra-Romantismo. Cultivado na Universidade do Largo São Francisco, retrata reuniões regadas a vinho e éter geralmente em repúblicas e cemitérios.
Influenciado pelas obras de Lord Byron, Álvares de Azevedo foi o maior representante da Segunda Geração Romântica. Sua prosa apresenta o noturno, o aventuresco, o macabro, o satânico, o incestuoso, os elementos do romantismo maldito. Abrangem o amor e a morte sob uma perspectiva exacerbadamente egocêntrica.
Ao lado de Álvares de Azevedo, três outros autores destacam-se na segunda geração da poesia romântica brasileira: Casimiro de Abreu, Fagundes Varela e Junqueira Freire. As obras literárias de cada poeta e de seus períodos respectivos, apresentam entre si uma característica comum: o medo de amar. Esse temor é, em essência, o medo de macular a virgem, de entregar-se ao prazer carnal e, assim, destruir o próprio amor que, na visão deles, passa a ser sinônimo de impureza e pecado, preferindo à morte, ou entregando-se à ela.

Características gerais do Ultra-Romantismo

liberdade criadora (o conteúdo é mais importante que a forma; são comuns deslizes gramaticais);
versificação livre;
dúvida, dualismo;
tédio constante, morbidez, sofrimento, pessimismo, negativismo, satanismo, masoquismo, cinismo, autodestruição;
fuga da realidade para o mundo dos sonhos, da fantasia e da imaginação (escapismo, evasão);
desilusão adolescente;
idealização do amor e da mulher;
subjetivismo, egocentrismo;
saudosismo (saudade da infância e do passado);
gosto pelo noturno;
consciência de solidão;
a morte: fuga total e definitiva da vida, solução para os sofrimentos;
sarcasmo, ironia.


 Manuel Antônio Álvares de Azevedo        
         A tão curta vida de Álvares de Azevedo é fonte de inúmeras polêmicas entre seus biógrafos. Discute-se desde o local onde teria nascido até a causa médica de sua morte. Principalmente polemiza-se em torno da sua conduta quando estudante em São Paulo. Libertino devasso ou estudante recatado? Vamos aos fatos que parecem certos.
         Sabe-se que o autor da Lira dos Vinte Anos nasceu no dia 12 de setembro de 1831, em São Paulo, onde seu pai era ainda quintanista da Faculdade de Direito. Tudo indica que teria nascido na biblioteca da casa do avô, embora haja uma lenda de que o parto teria ocorrido na biblioteca da própria Faculdade de Direito. De qualquer modo, Álvares de Azevedo teria nascido como, de resto, passaria toda a vida: entre livros.
        Formado, seu pai se transfere para a capital, o Rio de Janeiro, iniciando logo brilhante carreira jurídica. Aos quatro anos de idade, Maneco depara-se, pela primeira vez, com a morte. O falecimento de seu irmãozinho, Manuel Inácio, deixa marcas profundas sobre o jovem sensível. Alguns biógrafos atribuem ao choque com a morte do irmão uma febre que o domina entre os cinco e os seis anos, quase o mata, e que o deixaria debilitado pelo resto da vida. Certamente o poema “O Anjinho”, da Lira dos Vinte Anos, traduz, anos depois, a forte impressão que o episódio lhe causou:
 
“Não chorem! lembro-me ainda
Como a criança era linda
No frescor da facezinha!
Com seus lábios azulados,
Com os seus olhos vidrados
Como de morta andorinha!”

         Ainda adoentado, inicia-se nos estudos com pouco brilho. Ingressa, aos nove anos, no Colégio Stoll, onde logo se destaca, sendo considerado, pelo professor Stoll, “o melhor dos alunos, pela inteligência, pelo espírito, pela amável alegria e, principalmente, pela bondade”. Terminado o primário, já fala francês e inglês e ingressa no célebre Colégio Dom Pedro II para cursar o ginásio. Lá, aprende o alemão, o grego e o latim e tem aulas de filosofia com o poeta Gonçalves de Magalhães, introdutor do romantismo no Brasil. Sempre enfrentando problemas de saúde, recebe com menção honrosa, em 1847, o título de Bacharel em Letras, o equivalente, hoje em dia, ao diploma do Segundo Grau.
         Em 1848, ingressa na Academia de Ciências Jurídicas de São Paulo. A partir da sua transferência para a capital paulista até a sua morte, em férias, no Rio de Janeiro, a história se mistura com a lenda e fica difícil distinguir o homem do mito.
         Nas suas cartas à família e aos amigos cariocas, assim como na peça Macário, Maneco revela um imenso tédio em morar na pequena “cidade colocada na montanha, envolta de várzeas relvosas” com “ladeiras íngremes e ruas péssimas”, nas quais “era raro o minuto em que não se esbarrasse a gente com um burro ou com um padre”. A capital paulista era, então, habitada por não mais de 15 mil pessoas, que viviam escandalizadas com as aventuras devassas de uma sociedade secreta de estudantes, fundada em 1845, conhecida como “Sociedade Epicuréia”. Seus membros, alunos da Academia, chamavam-se uns aos outros pelos nomes de personagens do Lord Byron e tinham, como objetivo principal, colocar em prática as “extravagantes fantasias” do poeta inglês. Realizavam orgias intermináveis e, diz a lenda, cerimônias macabras nos cemitérios paulistanos.
 
         Chegando a essa São Paulo, Álvares de Azevedo trava logo amizade com dois poetas estudantes, notórios boêmios, Aureliano Lessa e o futuro romancista Bernardo Guimarães. Juntos, planejam publicar um livro de versos, intitulado As Três Liras.
         Introvertido, estudioso, Álvares de Azevedo leu com avidez e produziu vertiginosamente durante os quatro anos de Faculdade. Escreveu os poemas reunidos nos livros Lira dos Vinte Anos e Poesias Diversas; os poemas longos O Poema do Frade e O Conde Lopo; o drama Macário; as narrativas de Noite na Taverna e O Livro de Fra. Gondicário; quase uma centena de páginas de estudos literários; alguns discursos acadêmicos e ainda incontáveis cartas pessoais enviadas ao Rio de Janeiro.
         Ficaria muito difícil, portanto, a um trabalhador tão incansável, de saúde sempre abalada, ter-se misturado com freqüência às orgias sucessivas e aos excessos dos companheiros boêmios, menos dedicados à literatura e ao estudo. Vida louca? Certamente a dos que o cercavam. A de Maneco parece, aos estudiosos mais sérios, ter se passado fundamentalmente entre os livros e os sonhos.          Duas mortes marcaram profundamente o poeta nos seus últimos anos de vida. Em setembro de 1850, o quintanista Feliciano Coelho Duarte comete o suicídio. Em setembro de 1851, morre seu amigo João Batista da Silva Pereira Júnior. No discurso fúnebre do amigo, Álvares de Azevedo diria: “Cada ano uma vítima se perde nas ondas, e a sorte escolhe sorrindo os melhores dentre nós”.
         No seu quarto de pensão, compõe um poema dedicado ao amigo (Texto 3), e escreve na parede:

 
Histórias de Amor e Morte
        Os homens reunidos na taverna procuram impressionar seus ouvintes, acrescentando detalhes cada vez mais imaginativos, macabros e chocantes a seus relatos amorosos teoricamente pessoais e verídicos. Antonio Candido explica que, "em Álvares de Azevedo, elementos macabros estariam compondo com estes, de maneira peculiar, o par romântico Amor e Morte."
        Segundo Mário de Andrade, “Álvares de Azevedo sofreu como nenhum, apavoradamente, o prestígio romântico da mulher. Pra ele a mulher é uma criação absolutamente sublime, divina e ... inconsútil. O amor sexual lhe repugnava, e pelas obras que deixou é difícil reconhecer que tivesse experiência dele.” Os relatos de Noite na Taverna parecem confirmar a opinião do autor de Macunaíma.  Os contos giram em torno dos temas do amor e da morte, que são relacionados pela presença de momentos de necrofilia, incesto, assassinatos, canibalismo, loucuras várias. Assim, o amor está sempre na fronteira com a morte e a sexualidade se reveste de culpas e punições.

 

 
Solfieri
        O primeiro personagem a narrar sua história é Solfieri. O caso se passa em Roma, onde viu, numa noite chuvosa, uma misteriosa mulher. Seguiu-a através das ruas da cidade até um cemitério. A pálida mulher se ajoelhou em uma tumba e parecia chorar e cantar. Solfieri, enquanto a vigiava, adormeceu na chuva. Quando acordou de um sonho febril e delirante, a mulher desaparecera. Um ano depois, de volta a Roma, ainda deseja e sofre com aquela visão. Uma noite, depois de uma orgia, caminha pela cidade e entra num templo vazio, onde há um caixão entreaberto e o corpo de uma moça. Ele reconhece a mulher da sua visão. Fecha as portas da igreja, tira o corpo do caixão, beija e despe a mulher: “O gozo foi fervoroso – cevei em perdição aquela vigília”, descreve.
        Porém, a moça reanima-se ao “calor do seu peito e à febre de seus lábios” e revive. Acorda e desmaia. O narrador explica aos amigos: “Nunca ouvistes falar de catalepsia?” Ele leva a mulher do templo e a esconde em sua casa. Nos dois dias seguintes, ela parece enlouquecida:
  
        “Ria de um rir convulso como a insânia, e frio como a folha de uma espada. Trespassava de dor o ouvi-la. (…) Não houve como sanar-lhe aquele delírio, nem o rir do frenesi. Morreu depois de duas noites e dois dias de delírio.”
 
        Solfieri chama um escultor, encomenda e paga, em segredo, uma estátua de cera da jovem. Quando o escultor vai embora, ele a enterra no quarto, embaixo de sua cama. Durante um ano, dorme em cima da sua sepultura, até que a estátua fique pronta. Para confirmar a veracidade da história, lembra ao amigo Bertram que ele já vira a estátua através das cortinas do seu quarto, mas, na ocasião, Solfieri dissera que era “uma virgem que dormia”. E mostra, para os amigos que duvidam, a capela da defunta, que trazia como um amuleto em volta do seu pescoço: “uma grinalda de flores mirradas”, “murcha e seca como o crânio dela!”

 
Bertram
        Quando Solfieri termina seu relato, Bertram se levanta e passa a contar como se perdera graças a uma mulher. Na Espanha, ele conheceu e se apaixonou por Ângela, uma bela donzela. Quando conseguiu conquistá-la, já decidido a casar-se com ela, é chamado por seu pai e parte para a Dinamarca. Após dois anos, chega à casa do pai, que estava morrendo. Depois da morte do pai, ele volta à Espanha e encontra Ângela casada e com um filho. No entanto, eles ainda se amam e Bertram passa a ter um caso com ela.
 Porém, o marido de Ângela descobre e “quis representar de Otelo com ela. Doido…” À noite, Bertram espera ver a amada através da janela e, quando passa por sua casa, Ângela o chama. Ele entra e vê o marido dela degolado e, sobre seu peito, o filho, também morto. Ela matara a ambos:
 
        “ -  Vês, Bertram, esse era o meu presente (…) Sou tua e tua só. Foi por ti que tive força bastante para tanto crime… Vem, tudo está pronto, fujamos. A nós, o futuro!”
        Os dois fogem e viajam muito. Ela passa a se vestir de homem, beber, fumar, montar a cavalo e atirar. Um dia, abandona Bertram:
        “…partiu, mas deixou-me os lábios ainda queimados dos seus, e o coração cheio de gérmen de vícios que ela aí lançara. Partiu. Mas sua lembrança ficou como o fantasma de um mau anjo perto de meu leito. Quis esquecê-la no jogo, nas bebidas, na paixão dos duelos. Tornei-me um ladrão nas cartas, um homem perdido por mulheres e orgias, um espadachim terrível e sem coração.”
  
        Uma noite, é atropelado por uma carruagem em frente a um palácio. O dono do palácio, um nobre velho e viúvo, socorre e dá abrigo a Bertram. Ele desonra a única filha do nobre, uma bela jovem de 18 anos que se apaixona por ele, e foge com ela. Depois, enjoa da moça - “A saciedade é um tédio terrível” – e, numa noite de jogatina com Siegfried, o pirata, vende a jovem para o pirata. Logo na primeira noite, ela envenena Siegfried e afoga-se.
        Tempos depois, na Itália, Bertram tenta o suicídio no mar, mas é salvo por um homem e, sem querer, o mata. Desmaia e acorda num barco. É levado para uma corveta, cujo comandante o acolhe. À bordo, viaja a mulher do comandante, por quem Bertram se apaixona. Os dois traem o comandante todas as noites enquanto ele dorme.
        Alguns dias depois de um ataque pirata, o navio encalha num banco de areia. Viajam todos, então, numa jangada no meio do mar, quando vem uma tempestade e muitos homens morrem. Pela manhã, só havia sobrado cinco pessoas: Bertram, o comandante, sua mulher e dois marinheiros. O alimento e a água acabam, os dois marinheiros morrem e eles, para sobreviver, são obrigados a “uma prática do mar, uma lei do naufrágio – a antropafagia”, explica Bertram. Dois dias depois, os três tiram a sorte para decidir quem morreria para alimentar os outros. O comandante é o escolhido. Como ele suplica para não morrer, Bertram luta com ele e o mata. Alimentam-se do cadáver por dois dias e passam os dois outros sem comer, nem beber. Ela propõe que eles morram juntos, Bertram concorda: “Esse dia foi a ultima agonia do amor que nos queimava: gastomo-lo em convulsões para sentir ainda o mel fresco da voluptuosidade banhar-nos os lábios... Era o gozo febril que podem ter duas criaturas em delírio de morte.”
        No entanto, durante a noite, com febre e faminto, Bertram mata a moça, sufocando-a com um beijo. Porém, uma onda leva o corpo: “Eu a vi boiar pálida como suas roupas brancas, seminua, com os cabelos banhados de água: eu via-a erguer-se na escuma das vagas, desaparecer, e boiar de novo: depois não a distingui mais — era como a escuma das vagas, como um lençol lançado nas águas...” Dias depois, é salvo por um navio inglês, o Swallow.

Gennaro
        Após o relato de Bertram, Gennaro, o pintor, conta o que aconteceu a ele quando tinha 18 anos e era aprendiz na casa do mestre Godofredo Walsh. Godofredo já era velho, tinha uma filha de 15 anos – Laura – do seu primeiro casamento e era casado com Nauza, uma jovem de 20 anos.
Gennaro apaixonou-se por Nauza e Laura apaixonou-se por ele. Uma manhã, o mestre e sua mulher saíram. Gennaro ainda dormia quando Laura entrou no seu quarto. Ele acordou “nos braços dela”. A partir desse dia, todas as manhãs, durante três meses, Laura ia ao seu quarto. Um dia, ela revela que está grávida e que ele deveria pedi-la em casamento ao seu pai. Gennaro se cala e Laura percebe que ele não a ama nem quer se casar com ela. Gennaro continua apaixonado por Nauza.
        Laura não fala mais com Gennaro, adoece, e seu pai, vendo a filha morrer aos poucos, pára de pintar e sofre muito. Laura chama Gennaro na noite de sua morte, afirma que o perdoa e que morreria por sua causa. O velho pai fica transtornado com a morte da filha e passa a se fechar à noite no quarto dela, durante um ano. Enquanto o mestre chora a morte da filha todas as noites, Gennaro revela seu amor por Nauza e passa as noites no leito do mestre com sua mulher. Uma noite, o velho descobre a traição, leva Gennaro para o quarto de Laura e lhe mostra uma tela. Era o quadro da cena final da morte de Laura, que o mestre pintara. O quadro representava Gennaro lívido ouvindo as últimas palavras da moribunda. 

        No entanto, na manhã seguinte, o mestre se mostrou frio e não comentou nada sobre o que acontecera na noite anterior. Isso se repetiu por vários dias e noites e Gennaro percebeu que o mestre era sonâmbulo.
        Uma noite, o mestre convida Gennaro para sair com ele e o leva para uma montanha, à beira de um abismo. Pede que Gennaro espere, vai até uma cabana e volta após alguns minutos. Fala para Gennaro que sabe que ele lhe desonrara a filha e provocara a sua morte e que o traía com sua mulher. Propõe que Gennaro se jogue no despenhadeiro antes que ele mesmo o empurre. Gennaro, com medo e arrependido, deixa-se empurrar pelo velho. Cai nas águas, mas é salvo por camponeses. Depois que se restabelece, decide procurar o mestre e tentar obter o seu perdão. Mas encontra, no caminho, o punhal do velho e pensa em se vingar. Quando chega à casa de Godofredo, esta está trancada e às escuras. Arromba a porta e vai ao quarto de Nauza. Há um cheiro pestilento no ambiente e então ele vê os corpos de Nauza e de Godofredo. Entre ambos, o copo de veneno que o mestre, como Gennaro vem a saber depois, comprara na cabana da montanha. O velho matara a mulher e se suicidara.
  

Claudius Hermann 
 Os amigos insistem para que o inglês Claudius Hermann, que está bastante bêbado, conte uma história também. Ele conta que era um milionário devasso, viciado em corridas de cavalo. Um dia, antes das corridas começarem, ele vê uma bela mulher passando a cavalo na frente das arquibancadas: “no cavalo negro, com as roupas de veludo, as faces vivas, o olhar ardente entre o desdém dos cílios, transluzindo a rainha em todo aquele edema soberbo: … bela na sua beleza plástica e harmônica, linda nas suas cores puras e acetinadas, nos cabelos negros, e a tez branca da fronte; o oval das faces coradas, o fogo de nácar dos lábios finos, o esmero do colo ressaltando nas roupas de amazona”.
        Era a duquesa Eleonora e Hermann se apaixona por ela. Passa a segui-la e contemplá-la durante seis meses. Resolve, então, possuí-la de qualquer maneira. Suborna um empregado do palácio e, todas as noites, durante um mês, coloca sonífero na bebida de Eleonora e a possui enquanto ela dorme. Mas, ainda insatisfeito, decide raptá-la. 
       Coloca o sonífero no copo de água ao lado da cama da duquesa. O duque Maffio também bebe daquela água e ambos ficam narcotizados. Claudius carrega Eleonora adormecida para uma estalagem, fora da cidade. Quando a duquesa desperta na manhã seguinte, recusa-se a se entregar a ele, mas Claudius consegue convencê-la, falando do seu amor, mostrando-lhe os versos que escrevera para ela e, principalmente, argumentando que o marido a recusaria depois do rapto, e a sociedade a condenaria.
        Neste ponto da narrativa, Claudius mostra aos companheiros da taverna os versos que escrevera para a duquesa. Johann lê para os outros convivas. Claudius retoma o relato e conta que Eleonora decidiu ficar com ele. Interrompe aí o caso e dorme, desmaiado de sono e bebida. Os ouvintes tentam acordá-lo, mas não conseguem. Arnold, o louro, que até então estava dormindo, acorda e termina a narrativa de Hermann. Conta que, um dia, ao entrar em sua casa, Claudius encontrou “o leito ensopado de sangue” e, em um canto escuro, abraçado ao cadáver de Eleonora, o corpo do duque Maffio. Ele matara a esposa e se suicidara.
        Arnold termina a história, estende sua capa no chão da taverna e volta a adormecer, junto com outros companheiros que ali já dormiam.
 
Johann
 
        A história de Johann se passa em Paris. Estava jogando bilhar com um belo jovem louro que se chamava Artur. Acreditando que o jovem tentava trapaceá-lo, briga com ele. Os dois decidem, então, travar um duelo. Dirigem-se ao hotel em que mora Artur, onde este escreve uma carta à mãe e mostra a Johann um anel no seu dedo. Sugere que, se ele morrer, Johann entregue tudo a alguém que ele iria revelar mais tarde.  Brindam juntos à amada misteriosa de Artur.
        Artur explica que o duelo seria à queima-roupa, com duas pistolas, uma carregada e outra não. Cada um escolheria a pistola sem saber qual estava carregada. Johann concorda e ambos vão a uma esquina deserta, fora da cidade. À meia-noite,  Artur coloca as pistolas no chão. Eles escolhem as pistolas, sem tocá-las. Artur reza por sua mãe enquanto Johann lembra-se de que também tem uma família: a mãe, uma irmã e um irmão, que vive com elas e protege a irmã. No entanto, ele sempre os esquecia.
        O duelo prossegue. Eles caminham “frente a frente”, as pistolas se encostam nos peitos e são disparadas. Artur cai quase morto. Johann pega o anel e tira do bolso de Artur dois bilhetes. Volta à cidade e, à luz de um lampião, vê que um dos bilhetes era a carta para a mãe do rapaz, o outro era destinado a Artur, estava aberto e assinado apenas por uma inicial: “Tua G”. A mulher misteriosa marcava um encontro com o rapaz. Johann, por impulso, decide ir ao encontro no lugar de Artur. 
        Quando chega ao endereço mencionado, Johann está com o anel de Artur. No escuro, uma mão feminina encontra a dele e o leva. Sobem as escadas e entram num aposento. A moça fecha a porta e se entrega a Johann, que nota que ela era virgem. Passam a noite juntos e, quando Johann está saindo do quarto, encontra um vulto à porta. Acha que conhece aquela voz, mas não consegue se lembrar de quem era. O vulto o segue pelas escadas e, quando chegam à porta, o ameaça com uma faca. Eles lutam e Johann mata o rapaz sufocado. Ao sair, tropeça numa lanterna e resolve ver quem era o jovem que matara. Ergue a lâmpada e o reconhece: era seu irmão.
        Desatinado, sobe de volta para o quarto da jovem. A moça está desmaiada. Ele carrega seu corpo até a luz e vê… Nesse ponta da narrativa, Johann pede conhaque ao amigo Archibald; está trêmulo e suando, diz que sente frio e quer beber para esquecer. Então, finalmente, confessa: a moça que desonrara naquela noite terrível era a sua própria irmã.

 
Último beijo de amor
 
        Terminada a orgia, todos dormem, repletos de vinho, na taverna escura. A noite já vai alta quando a porta abre-se e entra uma mulher vestida de negro. O narrador assim a descreve:
“Talvez que um dia fosse uma beleza típica, uma dessas imagens que fazem descorar de volúpia nos sonhos de mancebo. Mas agora com sua tez lívida, seus olhos acesos, seus lábios roxos, suas mãos de mármore, e a roupagem escura e gotejante da chuva, disséreis antes — o anjo perdido da loucura.”
        Procura alguém, com a lanterna, entre os convivas adormecidos. Encontra Arnold, o loiro, parece que vai beijá-lo, mas pára e continua procurando. Quando a luz ilumina Johann, aproxima-se e o apunhala. Volta-se para Arnold e o acorda. Arnold reconhece sua antiga namorada, e ela confirma: “- Outrora era Giorgia, a virgem; mas hoje é Giorgia, a prostituta!”

        Então, no diálogo que travam tudo se esclarece. Ela era a “G” do conto anterior, contado por Johann enquanto Arnold dormia. Artur não morrera no duelo, fora socorrido e sobrevivera. Adotara o nome de Arnold e vivera desesperado os últimos cinco anos, na libertinagem, sempre desejando reencontrar sua amada, que desaparecera. Enquanto isso, Giorgia se tornara prostituta. Ela diz que está lá para se despedir de Artur/Arnold porque vai morrer e mostra o corpo de Johann. Arnold pergunta quem o matou e ela responde: “— Giorgia. Era ele um infame. Foi ele quem deixou por morto um mancebo a quem esbofeteara numa casa de jogo. Giorgia a prostituta vingou nele Giorgia, a virgem. Esse homem foi quem a desonrou! desonrou-a, a ela que era sua irmã!”
        Giorgia, então, despede-se de Artur, e mata-se com o punhal. Artur apanha o  punhal e se suicida. Seu corpo cai sobre o de Giorgia e a lâmpada apaga-se.



Bibliografia Básica
 
Obras Completas de Álvares de Azevedo; Org. Homero Pires; Rio de Janeiro; Companhia Editora Nacional; 1942.
 
ANDRADE, Mário de ; "Amor e Medo" in Aspectos da Literatura Brasileira; São Paulo; Martins; 1960.
 
CANDIDO, Antonio ; "Álvares de Azevedo, ou Ariel e Caliban" in Formação da Literatura Brasileira, Vol. 2, Belo Horizonte/ São Paulo; Itatiaia/Edusp, 1975.
 
CANDIDO, Antonio; "Cavalgada Ambígua" in Na Sala de Aula; São Paulo; Ática; 1985.
 
CARVALHEIRO, Edgar ; Álvares de Azevedo; São Paulo; Melhoramentos; s.d.
 
MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo; Poesia e Vida de Álvares de Azevedo; São Paulo; Editora da Américas; 1962.
 
VERÍSSIMO, José; "Álvares de Azevedo"; in Estudos de Literatura Brasileira, Segunda Série; Belo Horizonte/São Paulo



 



1850 - Feliciano Coelho Duarte
1851 - João Batista da Silva Pereira
1852 - ...
( Será que ele sabia que iria morrer? Ou foi pura coincidência?????)

         Entre os anos letivos de 1851 e 52, vai passar as férias com a família. Passeando a cavalo, a conselho médico, com seu cão Fiel pelas ruas do Rio de Janeiro, para amenizar os sintomas da tuberculose que o afligia, sofre uma queda. Após uma operação, segundo a família sem anestesia, para a remoção de um tumor na fossa ilíaca - provavelmente uma apendicite supurada - e depois de 46 dias de agonia, deixa a vida para virar lenda.


A LENDA DA MORTE DE ALVARES DE AZEVEDO
O domingo, 25 de abril de 1852, se iniciara sombrio na casa do Dr. Inácio Manuel Álvares de Azevedo, no Rio de Janeiro. Seu filho Manuel Antônio, o Maneco, pedira à mãe, D. Maria Luísa, que mandasse celebrar uma missa em seu quarto de doente. Sentia que, depois de mais de 40 dias prostrado no leito, vítima de uma série de males, que se manifestaram violentamente após uma queda de cavalo, chegara a hora da morte - que tanto cantara em seus versos de adolescente, apaixonado pelos delírios macabros de Byron e Musset.
         Após se confessar ao padre arrumado às pressas, pediu à mãe, grávida de seu oitavo irmão, que se retirasse  do quarto, pois precisava descansar. Por volta das 4 horas da tarde, com o auxílio do irmão Quinquim - quatro anos mais moço - ergueu-se um pouco do leito,  beijou a mão de seu pai e, a custo, exclamou:
         -- Que fatalidade, meu pai!
         Tentou ainda dizer algumas palavras, mas a boca já se contraía  e o corpo jazia imóvel nos braços do irmão.

         -- Maneco! Maneco!... Gritavam Quinquim e o Dr. Inácio Manuel.
         Do quarto ao lado, D. Maria Luísa, ouvindo e entendendo, soltou um grito desesperado e desfaleceu.
         No enterro, discursou o parente Joaquim Manuel de Macedo, médico, professor e já um dos mais importantes e populares romancistas do Brasil, autor de A Moreninha (1844). Entre outros elogios, afirmava que “Deus tinha acendido na alma do mancebo aquele fogo sagrado da poesia, que eleva o homem acima da terra e faz correr de seus lábios, em cânticos sonoros, a linguagem do inspirado”.
         No dia 27 de abril, o Correio Mercantil, jornal onde então trabalhava Manuel Antônio de Almeida, publicou, na primeira página, uma nota em que se lia: “Nesse jovem perdeu o Brasil um de seus mais esperançosos filhos, um coração patriótico e dedicado, um poeta cujos vôos deviam elevar-se a grandes alturas, um advogado que prometia em breve conhecer todos os arcanos da ciências jurídicas, pois que ainda no fervor dos anos já lhe eram igualmente familiares os poetas e literatos da Itália, da Alemanha, da França e da Inglaterra, assim como os escritos dos mais abalizados jurisconsultos e publicistas.”
         Quase um mês depois, a 22 de maio, em São Paulo, a sociedade acadêmica a que Maneco pertencia, o Ensaio Filosófico Paulistano, realizava uma sessão fúnebre em sua homenagem, presidida por Amaral Gurgel. Nos vários discursos e poemas apresentados, “gênio” é a palavra mais usada para caracterizá-lo.
        
Ao morrer, Manuel Antônio Álvares de Azevedo havia publicado apenas alguns poemas e discursos em revistas acadêmicas de circulação restrita aos estudantes de Direito de São Paulo. Já era, no entanto, considerado, por aqueles que o conheciam, uma grande esperança poética e intelectual.
         A sua morte, antes que chegasse a completar o vigésimo primeiro aniversário, privou-nos, nas palavras de José Veríssimo, “daquele que seria talvez o máximo poeta brasileiro”. Seria... Talvez... O certo é que a morte jovem criou, como sempre, um mito.  O mito do gênio doente e mórbido, que previra a própria morte em “Se Eu Morresse Amanhã”:
“Quanta glória pressinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que manhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!” 


Noite na Taverna

Introdução
        Neste livro de contos macabros, com histórias de amor e morte, Álvares de Azevedo revela, em prosa, por que ficou conhecido como o “Byron brasileiro”.
        As histórias de Noite na Taverna são carregadas de fantasia. Passam-se em diferentes países da Europa, seus personagens são devassos que se apaixonam por mulheres perdidas ou virgens misteriosas que terminam por perder-se. A sexualidade é sempre punida com a loucura e a morte; e o amor jamais se realiza plenamente. A atmosfera das cidades é corrompida e nebulosa, povoada de figuras fantasmagóricas. A imaginação romântica de Álvares de Azevedo se declara de forma exuberante nos contos do livro, narrados num estilo repleto de adjetivos e reticências.
 
O Byronismo e a "Sociedade Epicuréia"
   
        Álvares de Azevedo escreveu Noite na Taverna durante os anos que passou estudando na Faculdade de Direito de São Paulo, de 1848 a 1851. A capital paulista era, então, habitada por não mais de 15 mil pessoas, que viviam escandalizadas com as aventuras devassas de uma sociedade secreta de estudantes, fundada em 1845, conhecida como “Sociedade Epicuréia”. Seus membros, alunos da Academia, chamavam-se uns aos outros pelos nomes de personagens do Lord Byron e tinham, como objetivo principal, colocar em prática as “extravagantes fantasias” do poeta inglês. Realizavam orgias intermináveis e, diz a lenda, cerimônias macabras nos cemitérios paulistanos.
        Os contos de Noite na Taverna retratam perfeitamente as orgias ditas “byronianas”, reais ou imaginárias, dos colegas do seu tempo. Ficaram fortemente impressas nessa obra as marcas do tempo em que, segundo o seu contemporâneo de Faculdade, José de Alencar, “todo estudante de alguma imaginação queria ser um  Byron, e tinha por destino ine-xorável copiar ou traduzir o bardo inglês”.
        George Gordon, nascido pobre e manco em 1788, herdou, aos 16 anos, o título de Lord Byron e o castelo de Newstead. Espantou a sociedade aristocrática londrina com seus sucessivos e ruidosos casos amorosos, inclusive com sua meio-irmã Augusta, viajou por toda a Europa em busca de emoções, envolveu-se amorosamente tanto com homens quanto com mulheres, e morreu aos 36 anos, vítima da tuberculose,agravada por um ferimento em batalha, lutando pela libertação da Grécia, em 1824.
        Em meio a toda essa agitação existencial, que se tornou o paradigma do homem romântico que busca a liberdade, Byron escreveu uma obra grandiloqüente e passional. Encantou o mundo inicialmente com seus poemas narrativos folhetinescos, em que não faltam elementos autobiográficos, como Childe Harold’s Pilgrimage, e depois o assustou com a faceta satírica e satânica que apresenta em poemas como Don Juan.
   
Estrutura Narrativa
         No final da peça Macário, Álvares de Azevedo apresenta a personagem-título se aproximando de uma janela e observando, dentro de uma taverna, vários jovens conversando. Assim, na verdade, inicia-se o livro Noite na Taverna. Vejamos a cena final da peça de Álvares de Azevedo:
 Uma rua
MACÁRIO E SATAN de braços dados.

 SATAN: Estás ébrio? Cambaleias.

MACÁRIO: Onde me levas?

SATAN: A uma orgia. Vais ler uma página da vida cheia de sangue e de vinho — que importa?


MACÁRIO: É aqui, não? Ouço vociferar a saturnal lá dentro.

SATAN: Paremos aqui. Espia nessa janela.

MACÁRIO: Eu vejo-os. É uma sala fumacenta. À roda da mesa estão sentados cinco homens ébrios. Os mais revolvem-se no chão. Dormem ali mulheres desgrenhadas, umas lívidas, outras vermelhas. Que noite!

SATAN: Que vida! não é assim? Pois bem! escuta, Macário.
Há homens para quem essa vida é mais suave que a outra.
O vinho é como o ópio, é o Letes do esquecimento...
A embriaguez é como a morte. . .

MACÁRIO: Cala-te. Ouçamos.
 
        O que Macário e Satan escutam formam as narrativas de Noite na Taverna. Seu começo é encadeado à peça, mas não se trata de um texto dramatúrgico. É um livro de narrativas curtas em prosa, e não teatro. São, portanto, contos ligados através da estrutura conhecida como “moldura narrativa” – uma narrativa geral une todas as outras. Tal recurso, conhecido também como “contos enquadrados”, remete às mais antigas coletâneas de contos da literatura universal, como As Mil e uma Noites, o Decameron de Bocaccio e os Contos de Canterbury de Chaucer.
        Em As Mil e uma Noites, Sherazade conta as histórias para aplacar o ímpeto assassino do rei. No Decameron, os refugiados da peste contam suas histórias para passar o tempo.
        Em Noite na Taverna, são jovens e adultos reunidos na taverna, que, enquanto bebem e fumam, desejam ouvir uma “história sanguinolenta, um daqueles contos fantásticos –  como Hoffman os delirava ao clarão doirado de Johannisberg!” Cada conto tem, portanto, uma narrador diferente. Cada um dos homens conta a sua história “medonha”, afirmando que “não é um conto, é uma lembrança do passado”.
        Afirmações como essa são típicas do Romantismo. Procuram estabelecer a veracidade de textos bastante inverossímeis, histórias fantásticas, impossíveis de acontecer na realidade.