Lisbela e o Prisioneiro
RESUMO
Análise comparativa de Lisbela e o prisioneiro, peça de Osman
Lins (1961) cujo objetivo é focar a transmutação da narrativa dramática para a linguagem cinematográfica. Esta é a problematização central tomada como eixo de referência para o estudo comparativo do romance e sua adaptação no cinema, enfatizando como a linguagem cinematográfica e seus recursos próprios podem dialogar e recriar, preservando não só a intencionalidade, mas também o espírito do texto de partida, permitindo com isso possibilidades de novas leituras semióticas.
As relações entre literatura e cinema são múltiplas e muitas vezes complexas, caracterizada por uma forte intertextualidade. A relação, dialógica e dinâmica, existente entre livros e filmes muitas vezes favorece o estabelecimento de uma hierarquia entre as formas de expressão, e a partir daí, examina-se uma possível “fidelidade” de tradução. A insistência na fidelidade da adaptação cinematográfica à obra literária originária, pode resultar em julgamentos superficiais que freqüentemente valorizam a obra literária em detrimento da adaptação, sem uma reflexão mais profunda. Os filmes são julgados criticamente porque, de um modo ou de outro, não são “fieis” à obra modelo.
Torna-se portanto um falso problema, caso o espectador não conheça a obra original ou ainda se a obra em questão seja pouco conhecida e valorizada, ignorando diferenças essenciais entre as duas linguagens. Uma obra artística, seja ela romance, conto, poema, filme, escultura ou pintura, tem de ser julgada em relação aos valores do campo no qual se insere e em relação aos valores de outros campos, com os quais dialoga. A linguagem fílmica utiliza-se de recursos específicos na construção da narrativa que não podem ser explorados no universo da escrita; questão relevante e merecedora de aprofundamento.
ADAPTAÇÃO FÍLMICA
Às vezes a mais fiel das adaptações faz o pior dos filmes, porque o material não se presta a uma história filmada e, na forma como está escrito, não funciona na tela, por mais forte que seja a história no original. Em geral, e na tela certamente, o drama exige compreensão e intensificação (HOWARD; MABLEY, 1996, p. 37).
A noção de adaptação está no centro das discussões teóricas desde as origens do cinema, pois está ligada às noções de especificidade e de fidelidade, sendo esta pratica tão antiga quanto os primeiros filmes. L’arroseur arrosé (Lumière 1896), conhecido cartum dos periódicos da época transformado em ação filmada, preconiza uma série de adaptações cinematográficas de peças de teatro e romances celebres.
Uma adaptação visa avaliar ou descrever e analisar os processos de transposição de um romance para o roteiro e depois para o filme, podendo focar personagens, lugares, estruturas temporais, a época onde acontece a ação a seqüência de acontecimentos contados etc. Esta descrição que é muitas vezes avaliadora busca normalmente avaliar o grau de fidelidade da adaptação, identificando o número de elementos da obra inicial conservados no filme.
Na década de 20 os primeiros críticos de cinema, salientaram a especificidade da arte cinematográfica e condenaram adaptações diretas demais, principalmente as de peças teatrais. Já na escola dos Cahiers du Cinema contrariamente, defende-se a adaptação como meio paradoxal de reforçar a especificidade cinematográfica que deve evitar procurar equivalentes fílmicos das formas literárias, ficando o mais perto possível da obra inicial.
Foi só a partir da década de 50 que a crítica admitiu a possibilidade de adaptação e os filmes dividiram-se entre literalidade mais ou menos absoluta e busca de “equivalentes”que transpõem a obra, seja transportando a ação para outros lugares ou épocas, seja transportando suas personagens ou ainda buscando um meio fílmico de reproduzir sua própria escritura.
A noção de escritura fílmica surge e modifica a questão da problemática tradicional da adaptação, enfatizando os processos significantes próprios a cada um dos meios de expressão em questão: as palavras para o romance, a representação verbal e gestual para o teatro, as imagens e os sons para o cinema. Com a narratologia e logo após a lingüística generativa, a adaptação passa a ter um novo estatuto teórico que a concebe como uma operação de transcodificação.
Os elementos essenciais do texto teatral se tomam como ponto de partida para elaborar um roteiro cinematográfico que possuirá um alto grau de autonomia em relação à sua origem teatral. Os processos de adaptação operam em
três níveis:
a) Sobre o texto, cujo os diálogos se modificam, resumem, concentram, ampliam ou
eliminam.
b) Sobre a organização, e estrutura dramática que desaparece em parte ou por completo.
c) Sobre o espaço tempo, que sofre uma transformação e estabelece novas coordenadas.
A adaptação livre tem como resultado um texto fílmico em que o espectadorpode reconhecer a obra original mesmo que haja transformações decisivas.
REGIONALISMO
Lisbela e o prisioneiro foi publicada em 1963 pela Edição da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, em tiragem limitada e de alcance restrito, resgatando um universo da cultura popular e, apesar desse caráter nacional-popular, não se limita a questões do tempo em que foi escrita. A época pode explicar a gênese, mas não dá conta da estrutura que, nesse caso, vai além dela ou seja, é uma peça de origem rural mas que permite leituras urbanas, tendo uma perspectiva popular recriando situações que se encaixam em qualquer região e tempo representada em situações divertidas por meio da linguagem.
Na história de um prisioneiro acrobata, que vive literalmente na “corda bamba” – andando sobre o arame –, correndo sobre o fio de uma navalha, famoso por suas seduções e por sua paixão pela filha do delegado, muitas tramas se entrelaçam e situações se completam, com tipos populares se enfrentando numa delegacia do interior de Pernambuco em Vitória de Santo Antão.
Do corneteiro que se sente “bode respiratório” à filha do delegado que quer fugir com o prisioneiro, tudo vira pelo avesso: a autoridade máxima não tem o controle da situação; um padre falso celebra o casamento que também é falso, e o matador e morto por inexperiente atirador. O cenário na peça foi disposto de modo que a ação
se desenrolasse dentro e fora da cela na cadeia pública em Vitória de Santo Antão, PE – ocorrendo também cenas na calçada da cadeia.
Segundo Sandra Nitrini em Pósfacio (2003, p. 118): Matéria e linguagem reelaboradas tecem esta peça, regada por uma equilibrada dosagem de leveza, comicidade e ternura, assentadas em valores libertários em prol da vida, o que
abre as portas para outros tempos e outros espaços.
Ou seja, apesar da peça possuir linguagem e tipos característicos da região nordestina, os temas abordados como os desmandos e a conivência da polícia com o crime, as questões de ordem social e existencial vivenciadas na coragem do personagem Leléu quando rompe amarras e luta pela vida, permitem que obra perpasse os limites dados pelo tempo e pelo espaço.
O Filme de Guel Arraes (2003) recria este regionalismo do sertão pernambucano, em uma linguagem interativa e intertextual. Utilizando recursos como por exemplo estabelecer diálogo com outros filmes, mudar a ordem temporal dos acontecimentos, concentrar fatos ocorridos com três personagens em um só, utilizar a música como complemento da ação dramática, a narrativa fílmica conseguindo assim transmitir ao espectador, a mesma leveza e a comicidade do texto de Osman Lins.
ESTILO OSMANIANO
As obras de Osman Lins exibem um hibridismo incomum de gêneros literários que evolui de condição involuntária a artifícios deliberados. Na primeira fase de sua dramaturgia, a mistura entre épico, dramático e lírico ocorre de modo natural: os expedientes narrativos resultam do contato do autor com a cultura-arcaico-popular da região e invadem seus textos dramáticos permeados de embates interpessoais. A poeticidade faz morada em quaisquer deles.
Na sua fase de maturidade criativa entretanto, a combinação de gêneros passa a ser usada de modo
proposital, como recurso para exposição de seu pensamento artístico. A aglutinação de gêneros literários distintos, promovida pelo autor como recurso artístico faz com que cada tipo de texto esqueça de si mesmo e confunda-se com outro; a narrativa dramatiza, o teatro conta.
Numa palavra, na épica o autor abusa de expedientes da dramática; na dramática deleita-se com os da épica – sem em nenhum caso esquecer-se da lírica. Anatol Rosenfeld (2004, p. 97) em sua obra O teatro épico afirma que:
“Não há gênero puro e de fato; traços estilísticos não respeitam fronteiras o
que nos revela na obra de Osman Lins a impureza de gêneros, casual em muitos casos
é proposital em outros e marca seu estilo” [...]
DUAS LINGUAGENS: TEATRO E CINEMA
Para analisarmos aspectos da adaptação do livro ao filme, é necessário considerar que o cinema mais que um suporte, é uma nova linguagem, infinitamente diferente da linguagem verbal, ou seja, entraremos em dois campos, com significados múltiplos porém de diálogo permanente. A adaptação de um livro pode recriar na tela significados tão expressivos quanto os que se encontram no texto original, com a utilização de diferentes recursos narrativos e estilísticos.
Um desses recursos chamado de cutback e muito conhecido como flashback exemplifica a questão acima utilizado em uma das cenas do filme Lisbela e o prisioneiro. No jargão cinematográfico, qualquer volta a uma cena passada é chamada de cutback e admite inúmeras variações, podendo servir a muitos propósitos e na cena que iremos demonstrar a intenção é evocar a memória. No teatro a memória atua na mente do espectador, evocando coisas que dão sentido pleno e situam melhor cada cena, cada palavra e cada movimento. A cada momento precisamos lembrar o que aconteceu nas cenas anteriores, ou seja o teatro não tem outro recurso senão sugerir à memória tal retrospecto, já o cinema pode ir além projetando a imaginação na tela.
Segundo o teórico Ismail Xavier (2003, p. 38) “é como se a realidade fosse despojada da própria relação de continuidade para atender às exigências do espírito e o próprio mundo exterior se amoldasse às inconstâncias das idéias que vem á memória”. O teatro só pode mostrar os acontecimentos reais em sua seqüência normal; o cinema pode fazer a ponte para o futuro ou para o passado, inserindo entre um minuto e o próximo, um acontecimento de 20 anos passados.
Assim, o cinema pode agir de forma análoga à imaginação: ele possui a mobilidade das idéias, que não estão subordinadas às exigências concretas dos acontecimentos externos, mas sim ás leis psicológicas da associação de idéias. Dentro da mente o passado e o futuro se entrelaçam com o presente. O cinema ao invés de obedecer às leis do mundo exterior obedece as da mente.
Mas o papel da memória e da imaginação na arte do cinema pode ser ainda mais rico e significativo. A tela pode refletir não apenas o produto de nossas lembranças ou da nossa imaginação mas também à própria mente dos personagens. A técnica cinematográfica introduziu com sucesso uma forma especial para esse tipo de visualização.
Se um personagem recorda o passado – um passado que pode ser inteiramente desconhecido do espectador, mas que está vivo na memória do herói – os acontecimentos surgem na tela com um conjunto novo de cenas, mas ligam-se à cena presente mediante uma lenta transição. Essa técnica da produção dessas transições graduais de uma imagem para outra e do retorno á imagem inicial abre naturalmente amplas perspectivas; o roteirista pode usar as imagens retrospectivas para visualizar cenas e complicados acontecimentos do passado.
Embora trabalhoso método, obteve plena aceitação no meio cinematográfico pois, de alguma forma, o efeito realmente “simboliza” o aparecimento e o desaparecimento de uma reminiscência. Nitidamente observamos o resultado desses efeitos na cena em que o personagem Leléu explica a mocinha Lisbela o porquê de ser tão livre, revivendo a história de sua infância no interior de Pernambuco – São José da Coroa Grande – e um Zepelim que por lá havia passado. Observamos o curso natural dos acontecimentos, mudado pelo poder da mente através do relato do personagem Leléu, em que o teatro oferece aos nossos ouvidos a simples menção de lugares e acontecimentos, que se tornam nomes mortos em nossa imaginação enquanto que o cinema pode oferecer aos nossos olhos panoramas deslumbrantes mostrando-nos em cena a fantasia viva do jovem.
O que é poético no texto dramático torna-se ainda mais poético com a projeção da imagem, proporcionando ao espectador o efeito das lembranças de infância e fantasias, vivenciadas por Leléu. Essa técnica da produção gradual de uma imagem para outra e do retorno à imagem inicial, exige muita precisão e é mais difícil do que uma mudança brusca de cena pois é necessário combinar dois conjuntos de imagens exatamente correspondentes, para que o efeito realmente simbolize o aparecimento e o desaparecimento de uma reminiscência.
INTERATIVIDADE: MÚSICA, FILME E TEXTO DRAMÁTICO
A trilha sonora que é assinada pelo conceituado diretor teatral, João Falcão – A máquina, A ver estrelas, A dona da história, Quem tem medo de Virgínia Woolf – e pelo músico André Moraes, responsável dentre outros celebrados trabalhos, pela trilha sonora de Avassaladoras.Natasha, produtora do filme chegou ao cinema através da música – Natasha Records – que produziu e lançou no mercado excelentes trilhas sonoras de filmes brasileiros.
A perfeita integração entre a direção e a produção musical também fez diferença. Foram oito meses trabalhando em conjunto, algumas vezes a música sugerindo alterações no próprio roteiro. Elaborada com o olhar fixo nos sentimentos do filme, sem submissão de gênero ou classe musical; cada canção tem sua história e sua temperatura possuindo um entrelaçamento com os personagens e o enredo ampliando assim a carga de efeitos e
significados sob o espectador. Se por um lado a trilha sonora contribui para reforçar a caracterização das personagens, por outro interage com o próprio texto providenciando o clima da ação que dependendo da cena pode ser: romântica, de terror de suspense ou cômica.
O diálogo existente entre música e texto amplia o próprio texto no sentido de que a obra fílmica se enalteça de poeticidade e dramaticidade. Esta investigação nos proporciona também uma melhor compreensão do discurso implícito, ou seja, das mensagens ocultas, do não dito, do subentendido; extrapolando os limites do texto e do filme, multiplicando assim as possibilidades de leituras semióticas.Vejamos como isto ocorre em:
A Deusa da minha rua – interpretado no violão de Yamandú Costa e a voz de Geraldo Maia como uma valsa preciosa que Lisbela empresta às histórias que vê no cinema, vai futuramente se encaixar muito bem em sua vida no momento em que conhecer o Prisioneiro; a música interage com o texto antecipando a impossibilidade do amor entre classes socias diferentes.
A música parece ter sido elaborada para o momento em que Lisbela e Leléu se encontram na cena metamorfose que Léleu em seu circo apresenta a mulher gorila e passa a explicar o truque utilizado á Lisbela percebendo então sua paixão por ela. Declamando-lhe um poema camoniano que irá interagir não somente com a cena na qual Leléu e Lisbela serão sobrepostos como se fossem um só, mas também com a música no momento em que ela foge por já ser comprometida, recriando um efeito ainda maior devido a interatividade entre cena, música, poesia e texto: [...]
Como diz o poeta:
Transforma-se o amador
Na coisa amada
Por virtude do muito imaginar
Não tendo mais que desejar
Por já ter em mim
A parte desejada.
Interagindo com o texto dramático em:
[...]
Lisbela: Não! Leléu, você não pode ir?
Leléu: Pude. Estou com dois cavalos aí fora. Mas era grosseira eu ir com a senhora.
Lisbela: Não precisa continuar me chamando de senhora.
Leléu: Pra mim é o que a senhora Há de ser sempre. Chamar “você” é um exagero, não mereço tanto.
Dr. Noêmio :Por que você não foi embora, rapaz? Por que voltou?
Leléu :Por causa de dona Lisbela, Doutor. Pra ficar perto do chão onde ela pisa.
Lisbela: Você podia ouvir minhas pisadas junto de você a vida toda. Por que não me levou?
Leléu: Porque a senhora não merece a incerteza da minha vida. Não tenho eira nem beira, que trono lhe podia oferecer?
(LINS, 2003, p. 90-91).
Após a análise sobre o complexo trabalho de transformar o texto teatral em texto cinematográfico notamos que as opções de cada autor precisam ser entendidas e, sobretudo respeitadas já que não existe uma sistematização de procedimentos, tornando cada caso único e particular.
Uma história pode ser contada de vários modos, examinando como o drama foi concebido e como os personagens são caracterizados em menor ou maior detalhe, permanecendo mais misteriosas ou mais permanentes, no momento em que ocorre a transposição de uma linguagem à outra; como o filme tece a narrativa e nos faz ganhar consciência do que trata a história no texto literário.
Através deste olhar intersemiótico, a função do cinema passa a ser de transferir para a tela não apenas uma história cuja mensagem é veiculada por meio de personagens, mas também canalizar para ela os mecanismos necessários à organização interna da montagem, que pressupõe esteticidade, criatividade e linguagem própria.
Filmografia: Lisbela e o Prisioneiro
Arraes, Guel – BRA – 2003 – Duração 106 min
LINS, Osman. Lisbela e o prisioneiro. São Paulo: Planeta, 2003.
BAKHTIN, Mikail. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance.
São Paulo:Unesp: Hucitec,1988.
BOSI, Alfredo. O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 1997.
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METZ, Christian. Linguagem e cinema. São Paulo: Perspectiva, 1980.
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NITRINI, Sandra. Literatura comparada. São Paulo: EDUSP, 1997
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